Violência camuflada

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Século 21. 2006. Brasil. Uma operária do setor fabril da região Sul é acorrentada a uma máquina têxtil. Ela só será libertada depois de cumprir sua meta de produção. Assim como todas as outras trabalhadoras que apresentaram baixa produtividade.

Outra trabalhadora, de uma empresa do Nordeste do país, para usar o banheiro durante o serviço é obrigada a fazer a limpeza dos sanitários, pias e chão. Ela decide levar um urinol para o trabalho e fazer suas necessidades fisiológicas diante das colegas.

Numa terceira empresa, na Bahia, vários trabalhadores são colocados num auditório. Os homens que não atingiram as metas de vendas são obrigados a desfilar vestidos de mulher, ornamentados com um pênis de plástico preto – os negros têm que usar o artifício de plástico branco. E as mulheres são oferecidas de brinde para programas sexuais com os colegas que atingiram as metas. As que não aceitam são queimadas com cigarros nas nádegas.

Humilhação, tortura, violência. Perpetrada de forma sistemática contra trabalhadores, com o objetivo de torná-los mais produtivos, ou descartá-los por baixa produtividade. Todos, vítimas do assédio moral.

São apenas três casos pinçados entre os encontrados e publicados pela pesquisadora Margarida Barreto, uma das maiores autoridades no Brasil sobre assédio moral.

 

Na internet: www.assediomoral.org

Onde denunciar: Ministério Público ou Procuradoria Pública do Município; Sindicato de sua categoria

Importante: a denúncia pode ser anônima.


Violação de direitos

O assédio moral é um risco não visível de uma potência devastadora na saúde do outro e uma violação de direitos dos trabalhadores. É uma humilhação sistemática ao longo do tempo. Os berros, os gritos, os murros na mesa; os operários revistados como ladrões na saída das fábricas, os limites de tempo para o uso do banheiro, as penitências para os atrasos, os castigos para o não cumprimento de metas, a intolerância para qualquer tipo de doença ou queixa; são atos de violência, que agridem o outro, e, dependendo de quanto agridem, podem se constituir até em dano moral. Têm uma intenção e uma direção. Normalmente é para fazer a pessoa desistir do emprego. A pessoa acaba, muitas vezes, pedindo a demissão e ainda carrega com ela seqüelas graves, como transtornos mentais.

Durante cinco anos a médica, que se especializou na área da psicologia social, entrevistou mais de dois mil trabalhadores. Defendeu tese de mestrado e doutorado sobre o tema. E ainda, com base em consultas a outros 42 mil trabalhadores de todo o país, de empresas privadas e públicas, de organizações não governamentais e sindicatos, traçou a primeira grande pesquisa nacional sobre o tema. O resultado impressiona: do total dos entrevistados, 10 mil revelaram ter sido vítimas de humilhação e constrangimento, repetidamente, no ambiente de trabalho, na maior parte dos casos, por ação dos chefes. Só no sindicato dos químicos, onde se deu o início da pesquisa, 42% dos trabalhadores sofriam assédio moral.


Os sintomas

A classe trabalhadora está adoecendo muito por causa do assédio moral.  E os sintomas são nítidos, explica a médica:

– Às vezes, a pessoa nem sabe que está sofrendo o assédio, mas pelos sintomas é possível detectar o problema. Pode começar com choros freqüentes, tristeza, falta de concentração, de vontade de ir trabalhar, que pode se caracterizar por estresse. Mas assédio moral não é estresse. No assédio há um processo de esmagamento que – muitos autores acreditam – pode levar a um suicídio psíquico. É uma desvalia tão grande que a pessoa não se considera mais útil e pode acabar se matando. Muitos têm transtornos como perda de memória, insônia, sonhos e pesadelos com o tirano ou agressor. Desenvolvem a chamada Síndrome de Burnout, que se caracteriza por exaustão emocional, avaliação negativa de si mesmo, depressão e insensibilidade com relação a quase tudo e todos. Quando chegam à empresa sentem palpitações, pânico, calafrios, suores. Aí vem a depressão, a angústia, muito comum hoje. Fora isso, você tem outras tantas patologias que podem ser agravadas por fatores emocionais, como diabetes e hipertensão.

Bancários, vítimas freqüentes

Regivaldo Farias, 30 anos, funcionário do Banco do Brasil em Pernambuco, é vítima de assédio moral. Ele conta que começou a sofrer assédio de seu chefe no primeiro mês de trabalho:

– O meu gerente não pedia as coisas, ele ordenava. Eu ficava sempre depois do horário. Ele não tinha diálogo, só monólogo, era ouvir e não poder nunca colocar minha opinião. Aquilo foi me afetando, fui segurando. Ele só chegava pra criticar, dizia que meu trabalho não prestava, isso já nos primeiros três meses de banco. Fui ficando doente, meu sistema imunológico baixou e eu procurei uma pneumologista. Ela me examinou e me encaminhou para um psiquiatra. O psiquiatra me disse que realmente eu precisava de um acompanhamento e que tinha que sair do ambiente da agência. Cheguei a ser internado. E até lá no hospital, o gerente ligava para saber quando eu ia sair. Ele era tão opressor que até me fez desmarcar uma audiência judicial por causa do trabalho. Proibiu-me de usar a tesouraria do banco, ordenou que os funcionários não me atendessem. Era humilhação atrás de humilhação. Só fui ter paz quando ele foi transferido. Mas foi uma luta que durou um ano e dois meses.

A paz que Regivaldo conquistou foi graças ao Sindicato dos Bancários, que publicou uma cartilha sobre assédio moral. Por meio dela, Regivaldo teve consciência de que sua saúde não tinha sido afetada por uma fragilidade pessoal, mas de um sistema perverso de controle de produção. Segundo Regivaldo, alguns colegas já tinham passado por aquilo, mas entendiam que “esse era o jogo a ser jogado”. Criticar era perder o jogo ou se arriscar ficar fora dele.

Só com a intervenção do Sindicato e com laudos de quatro psiquiatras, Regivaldo conseguiu provar que o problema não era só dele, mas do sistema. Um dos psiquiatras chegou a ir à agência e fazer entrevistas com outros funcionários. Comprovou que 10% deles estavam com problemas psíquicos. Era uma agência doente. Depois disso, o gerente perseguidor foi transferido.

– A gente sabe que o gerente também sofria pressão. Falam tanto em responsabilidade social, mas só vejo isso da porta pra fora da instituição. Para dentro são metas e metas. Claro que temos que atingir as metas, eu sempre atingi as minhas, mas por que a gente tem que ser humilhado para isso? Eles falam que é um problema interpessoal, mas não é não, em todos os bancos existe a mesma coisa, completa.

E o sindicato comprova. Segunda a Secretária Geral do Sindicato dos Bancários, Suzineide Medeiros, coordenadora do projeto “Assédio Moral na Categoria Bancária, Uma Experiência No Brasil”, que deu origem à cartilha, pelo menos 39% dos bancários sofrem assédio moral.

– Fizemos uma pesquisa comparativa e, na média, poderíamos dizer que 32 mil bancários, nos últimos seis meses, passaram por assédio moral.

A pesquisa foi feita com bancários de 25 estados, de todas as regiões do Brasil. No caso dessa categoria, o maior constrangimento é com relação a metas abusivas.

– Éramos 800 mil, hoje somos 400 mil, houve uma redução drástica dos trabalhadores. A categoria deve trabalhar seis horas. Mas se sair nesse horário, outros acusam o que saiu de deixar trabalho acumulado. A compensação por banco de horas também é aleatória. As folgas não são planejadas junto ao trabalhador. E ainda são cobradas dele as metas. Aqueles que não conseguem atingi-las são submetidos ao assédio. O funcionário visto como descartável, diz Suzineide.

A médica e pesquisadora Margarida Barreto explica por que essa prática é cada vez mais comum entre as empresas:

– A gente vive numa sociedade ainda bastante marcada pelo coronelismo, na qual as atitudes autoritárias são bastante banalizadas. Por outro lado, há uma nova reorganização internacional do trabalho. A política de gestão das empresas visa ao resultado em curto prazo. Nela o trabalhador não é importante, e sim a sua produtividade. É o neoliberalismo. E o trabalhador, para não perder o emprego, compromete sua saúde física e mental. O resultado disso é perda de direitos. É trabalho precarizado, baixos salários, ameaça de desemprego. Adoeceu, eliminam-se os adoecidos, coloca-se gente mais nova.

 

A importância da denúncia

Para procurador João Bertier, o único método de combater o assédio é a transparência, porque ele não se dá diante da sociedade, mas dentro das empresas.

 – Ao denunciar, isso tende a diminuir. O sindicato da categoria pode ajudar nisso, seu papel é fundamental. Ele deve ser atuante, forte, estar constantemente dialogando com o trabalhador. Ele é que pode fazer essa ponte. E o trabalhador não precisa aparecer. Pode fazer a denúncia anonimamente ao sindicato ou ao Ministério Público. Existem meios para que ele não fique com o ônus da denúncia. Pode entrar com uma ação coletiva, por exemplo. A empresa jamais vai saber quem deu início à reclamação.

O músico Diego Gomes Jorge, ex-monitor do projeto “Jovem Pela Paz”, do governo do estado do Rio de Janeiro, foi vítima de assédio moral. Ele preferiu entrar com uma ação coletiva na procuradoria da Justiça de Nova Iguaçu, contra o governo. Mas não se esquivou de liderar seus colegas e nem de aparecer como mentor intelectual da ação.

O caso é de assédio moral político partidário. Diego e outros jovens denunciam que o programa ”Jovens Pela Paz”, que pretende inserir jovens na sociedade por meio de atividades culturais e artísticas, tem obrigado os participantes a trabalhar em campanhas políticas do PMDB, partido do governo, e em repartições públicas.

Diego conta que começou como voluntário do programa em 2004, depois se tornou bolsista. Em um mês foi colocado no cargo de monitor, dando aulas de canto e de teoria musical e instrumental para os jovens. Era responsável por cem jovens e recebia 800 reais por mês. A seguir passou a supervisor, com a missão de orientar os monitores, e ficou no cargo por um ano. O coordenador geral do programa, Gilson Pinheiro Sombra, é namorado da Clarice Matheus, filha da governadora Rosinha Matheus. Durante esse período na supervisão, Diego percebeu uma enorme engrenagem com objetivos políticos.

– A maioria dos bolsistas eram indicações políticas. Quando eu era bolsista, já achava estranho ter que dar 10 reais de colaboração do auxílio bolsa para o supervisor. Diziam que era uma caixinha para custear eventos. Depois que comecei a conhecer a supervisão, vi que havia vários grupos políticos dentro do programa, ligados ao PMDB, para os quais devíamos trabalhar. Quando era lançada alguma campanha importante do governo, a gente tinha que ir lá fazer “claque”. Quem não ia era sumariamente demitido. Como muitos necessitavam da bolsa – mães solteiras, por exemplo –iam obrigados. Era constrangedor. Eu fui excluído quando não quis trabalhar para a campanha do prefeito de Nova Iguaçu, Mario Marques. Eu tinha que botar os bolsistas como cabos eleitorais dele. Só na Baixada Fluminense são 900 bolsistas, mais ou menos 7 mil em todo estado. Imagina esse pessoal todo fazendo campanha. Comigo saíram 50 a 60 bolsistas. Nós entramos com uma ação coletiva por assédio moral na Procuradoria de Nova Iguaçu. A ação é por racismo também, porque muitas vezes nós éramos chamados por termos que evidenciavam o racismo.

O procurador da justiça do trabalho de Nova Iguaçu, João Bertier, aceitou a denúncia. Foi aberta uma ação do Ministério do Trabalho com o Ministério Público em conjunto.

- Não havia inclusão social alguma. Primeiro houve o desvio do programa. Segundo, eles foram obrigados a trabalhar para o estado sem concurso público. E por último, tiveram de aderir ao movimento político da juventude do PMDB. É assédio moral, coação, porque a rigor esses jovens eram para ser inseridos em programas sociais. O processo está em andamento, confirma o promotor.

Por que tem crescido tanto os casos de assédio moral no país? O procurador procura a resposta: – Isso é herança do trabalho escravo. O trabalhador não é visto como um cidadão, mas como coisa. Muito assédio moral no Brasil tem a ver com perversidade, mas outros têm a ver com a questão da cidadania. Como aquelas empresas que revistam os empregados na hora de embora. O empregador acha que o trabalhador é sua propriedade. Isso contribui muito para o assédio. O Brasil tem que se reeducar nas relações de trabalho e a denúncia é o primeiro passo para isso.

Matéria extraída da revista Observatório Social - nº 11 - out/2006

 

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